Duzentos anos exatos após a chegada da Missão artística Francesa ao Brasil, Katia Fiera projeta e concretiza a travessia transatlântica no sentido inverso, em busca de uma experiência de exílio singular. Se, por um lado, a presença francesa em terras brasileiras registrou, em cores e em detalhes, as belas e
exuberantes paisagens da colônia às vésperas de sua independência, por outro, ressaltou os fundamentos da sociedade colonial patriarcal, escravocrata, desigual, injusta. A exemplo de Jean-Baptiste Debret, cujos escritos, aquarelas, ilustrações e litografias foram reunidos no livro Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil (1834), Katia Fiera nos propõe uma etnografia ilustrada da presença afrodescendente na capital francesa, resultado da residência artística de seis meses realizada no ateliê da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), na Cité Internationale des Arts
de Paris. No início, Paris era representação, a partir de um mapa fixado na parede do ateliê. Aos poucos, e à medida que passou a percorrer a cidade – num exercício de observação e
de apropriação do urbano, de seus componentes, códigos, percursos – arquiteturas imaginárias conectaram-se a afetos, constatações,descobertas. A malha urbana parisiense se transpõe progressivamente nas linhas negras traçadas pela artista. Suas expedições são como missões de reconhecimento, partindo de seu bairro, o Marais, e ganhando outras zonas da cidade, beirando periferias
sociais que se apresentam à medida que ela diversifica seus itinerários. A Paris turística do glamour e das belas imagens – o Sena, a torre Eiffel, o Louvre, as belas avenidas e bulevares – torna-se o outro lado de um universo urbano bem particular. A artista vai encontrar nas ruas de Belleville e de Montmartre uma paisagem da diversidade, da mixidade social que se manifesta em cores, em sonoridades de múltiplos dialetos e aromas. No bairro de Barbès, aos pés de Montmartre, Katia percorre o « marché » da rua de Jean. Ali se vendem peixe defumado, banana da terra, farinha de mandioca, tecidos e vestimentas que remetem a desertos, a africanidades, ou seja, a uma diversidade cultural concentrada, densa, única. Cores emergem das ruas, das passagens, das avenidas e dos bulevares « cor de café ». E há, também, as varandas dos cafés, os transeuntes, os habitantes, os turistas… A presença humana, por vezes, é tão imponente, quanto invasiva. E se trata aqui da Paris que meses antes vivera um momento crítico devido a um atentado, tornando-se um território sensível. A poluição do ar se confunde com a poluição visual causada por inúmeros andaimes da cidade em obras, em restauração e propõem desvios aos trajetos do andarilho, “como em São Paulo”, constata a artista. A cabo das inúmeras incursões urbanas, Paris não é somente campo de trabalho, mas lugar de pertencimento, de experiência da alteridade. A sensação de
familiaridade, de intimidade que a artista estabelece com o espaço urbano torna possível identificar
feridas, fissuras, complexidades, nuances, pontos de tensão, de conflito. Apropriar-se da cidade possibilita nomear as cores de uma mestiçagem desordenada, controversa, nem sempre justa, muito menos igualitária – como o Brasil apreendido por Debret – e cuja riqueza se reconhece ser inesgotável O trabalho de Katia Fiera é um exercício de reconhecimento e de apropriação. Trata-se bem de um olhar singular, estrangeiro, que desvela, desvenda e acentua aquilo que a rotina e o costume tendem a atenuar.
“Viagem Pitoresca ao Boulevard cor de café”, de Katia Fiera
En 1816, un groupe d’artistes et d’architectes français débarque à Rio de Janeiro avec la mission de propager les Beaux-Arts dans l’autre hémisphère. La cour portugaise venait de s’installer à Rio, timorée par la puissance de l’armée napoléonienne. De cette “Mission française”, nous, Brésiliens, retenons un nom en particulier : celui de Jean-Baptiste Debret, dessinateur, peintre, scénographe, graveur, porteur d’un regard à la fois curieux et critique vis-à-vis de la réalité sociale de ce Brésil colonial. Admiratif et observateur des végétations des forêts vierges, Debret s’est consacré au dessin des espèces botaniques locales, mais l’importance de son travail vient surtout de l’étude d’une société patriarcale, inégalitaire, injuste, basée sur l’exploitation agricole et le trafic de main d’oeuvre africaine. Cousin et ancien élève de Jacques-Louis David, Debret a réuni ses écrits et ses lithographies dans l’ouvrage “Voyage pittoresque et historique au Brésil” (1934).
Deux siècles plus tard, inspirée par le travail de Debret, Katia Fiera réalise la trajectoire inverse, de São Paulo à Paris, avec l’objectif de découvrir, de (re)dessiner la présence d’Afro-descendants dans la capitale française. Son projet obtient le soutien de la Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), qui la récompense avec une résidence artistique à la Cité des Arts. Si, d’un côté, la résidence est un moment de recherche et de création, de l’autre, elle suggère le repli et des moments de solitude, en ouvrant les voies à un travail en profondeur.
La profondeur poétique cachée dans l’apparente banalité des choses mondaines, Katia a l’habitude de l’identifier, de la dévoiler, lors de ses déambulations dans la ville de São Paulo, où elle habite. Substrat et source première de son processus de création, ces rituels urbains permettent de répérer les éléments qui composent les répertoires des différents paysages investis et, aussi, de plonger dans la complexité du maillage urbain afin de “s’apercevoir soi-même, dans la ville”. Katia se sert de l’expérience subjective pour composer des “situations” qui seront ensuite inscrites dans des “architectures”. Les supports et techniques employés varient, toujours partant du dessin: peintures, sérigraphies, livres d’artiste, installations…
Au départ, Paris n’était autre chose qu’une carte fixée au mur de son studio/atelier parisien. Peu à peu, l’artiste a donné corps à des connexions qui délimitaient une architecture imaginaire, bâtie à partir de ressentis, d’impressions, d’affects, de constatations. Le maillage urbain parisien se construisait progressivement par des lignes noires tracées par l’artiste. Les expéditions commencent dans les rues environnantes de la Cité des arts et regagnent le Marais, débouchant sur la place de la République – lieu de convergence, une sorte de grand autel, surtout depuis les attentats de novembre 2015, qui intègre rapidement la liste des lieux les plus visités par l’artiste. Elle se dirige de nombreuses fois vers Belleville, et remonte le Canal Saint-Martin, Jaurès, Stalingrad, pour arriver aux pieds de Montmartre. Une fois à Barbès, elle plonge dans le marché de la rue de Jean, au coeur de la Goutte d’Or, au métro Château Rouge. Le regard de l’artiste est avide d’alternances : façades, rues, boulevards… Et il y a les terrasses de café, le commerce, les passants... La présence humaine est parfois imposante; la pollution de l’air se confond avec la pollution visuelle causée par les nombreux échafaudages qui cachent les immeubles en travaux, qui détournent les trajets (celui de la marche et celui du regard), comme à São Paulo.
Du coup, Paris n’est plus seulement un champ de travail pour Katia Fiera. Paris est désormais un vrai lieu de vie. La familiarité et l’intimité avec la ville lui permettent d’identifier des blessures, des complexités, les points de tension et de conflits, de nommer les couleurs d’un métissage urbain désordonné, controversé, pas toujours juste ou équitable – comme le Brésil dessiné par Debret –, et dont la richesse reste indéniable, inépuisable.
Ce beau travail de reconnaissance et d’appropriation du territoire a pris forme au long de la résidence. Et c’est ainsi que sur les pages de “Viagem Pitoresca ao Boulevard cor de café”, un regard singulier sur Paris s’inscrit en paysages, architectures et personnages, soulevant les voiles qui servent à atténuer la densité et les couleurs de la vraie vie.
Fabiana de Moraes.
“o mar está de pé no fundo da vista”,
breves escritos sobre desenhos em percurso
Sobre a invenção de outro mundo
São dias brancos. De uma alvura que não cega, mas faz pesar o olhar. Irrompe esse cheio de branco a paisagem: não é uma aparição, é uma construção aos poucos, adensando-se com sacudidelas. Agora é possível enxergar uma paisagem estreitamente relacionada com os (des)limites do sensível, com o que é conhecido, inserindo-se nos brios do que não foi possível apreender sobre as coisas. Elas estão lá, porém, em outro contorno.
Não se trata apenas de um artifício do desenho, é outro mundo. E este não pré-existe em dada circunstância, parece desgrudar-se da consciência e manifesta outra natureza - aquilo que já está e o homem constrói com o olhar. Nesse outro mundo, enxerga-se com outras partes do corpo e vivencia-se seus códigos. Não se registra pureza visual e sim lugares onde a palavra e o gesto forçam diferentes possibilidades de natureza e condições de paisagem.
De perto ou de longe, desfruta-se dessa paisagem. O mar. Mas é preciso esquecer que ele quebra na praia. Tudo se acumula e se dispersa quando se vê. Pode-se intuir como flutuar e percorrer seus ares. Quando se está ali, é possível experimentar outras geologias, outras topografias e até climas. Seus mapas existem, mesmo atestando-os por aquilo que ainda não foi visto. Só se pode ver o que já foi visto?
Nas paisagens de Kátia Fiera não se confirma uma expectativa de reencontro. Não se é inundado de lembranças ou transportado para o álbum de fotografias, para aquela viagem, aqueles dias felizes. O navio é navio e outra semântica de navio. A cerca pode não ser só cerca. E se a pedra fosse só pedra e a personagem fosse exatamente condizente com ela, não seria a construção de paisagem da artista, seria só transporte deste mundo para o outro.
Seus desenhos são um convite ao vagar, para se desconfiar se é possível chegar a lugar algum - e é preciso? Quando se encontra neste entorno paisagístico, é possível relatar seus temas. Mas por que estão ali? E por que estão figurando outro mundo? Este, que se habita, lida com o aparente, com as argumentações viciadas na existência. É para iludir-se? Sim. Dar-se, às vezes, a outros tempos, outras normas, outras invenções de lugares quase invisíveis ao olhar acostumado, o que garante um tanto de instabilidade, para fugir dos “belos locais”, os quais Valéry tanto renega. Fuja dos “belos locais” para ver mais com a retina do que com o intelecto, ele propõe. Pois bem, esqueçamos os conceitos que formigam de ideias esvaziadas e vamos aos objetos, aonde se espacializam ou se delineiam, ao encontro dos “prazeres e aos sofrimentos de ver”.
[1] VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci, 1894.
A tarefa da linha
São também linhas de força, escapando e atravessando para mostrar a distância e o tempo que leva para percorrer. É como soltar-se da margem; aos poucos a linha naquele vazio vai comparecer e criar um caminho. Ou ainda, quando se deixa o olho aventurar-se, ele mesmo vai perseguir tantos trajetos, outros tantos imprevisíveis que a intenção da linha nem pretendia.
Quando Kátia Fiera desenha, não se preocupa com os destinos por onde a linha vai levar a sua mão – o que por desejo se delineia. Ela se rende às porosidades e transparências que as superfícies eleitas reservam. Mas o silêncio branco é perturbado e isso é intenção, linguagem, certeza. Sua poética vai mesclando-se ao acaso, ao orgânico, à imaginação, a um exercício visual de tecer a linha.
A artista lida com uma manufatura no tempo e em tempos. O que acontece em instantes de desenho sobrevive e reverbera no percurso. Experimente: abra e feche os olhos. A cada piscar outro recorte da paisagem vai surgir à sua frente, desigualados, não lineares. A artista edita a cena e elabora um percurso ao olho. Mais adiante, o que se viu não se apaga para que outro se processe, efetiva uma espécie de contiguidade no espaço. Pode-se ir, voltar, ir...
O tempo de dentro pára, ela detém sua atenção para ver. Mas, quando o tempo passa, aquilo que era vontade vira arquivo, possibilidade, critério, referência, visualidade e, por fim, desenho. Kátia Fiera abre janelas para o outro mundo, é possível avistar mar adentro, barcos e desenhos de água. O cenário muda: cercas, muitas delas, vistas enquadradas em páginas de livro. Há também um cárcere, um ver ensimesmado, assoberbado de uma tarefa e pela monotonia.
Nesses percursos de linha, o esboço não é tão necessário. A artista prefere a espontaneidade do gesto, para manter uma organicidade de seu traço, e as possibilidades de improviso, de inventividade. São “desenhos de memória e imaginação”, ela conta. Trabalhos exaustivos para uma arquitetura híbrida, oscilante e quase frágil quando se organiza na parede. É um desenho de caminhar, a se percorrer, “deambulando-os”: referência provavelmente proveniente das montagens fotográficas de hidrelétricas feitas por seu pai.
A artista constrói uma narrativa do olhar sobre a paisagem, flagrando lugares, delimitando assuntos. O desenho se espacializa, cria teias, ramificando-se para dar conta dos movimentos de ver. Já em seus livros de artista, o movimento se dá na coreografia de passar páginas: cada página-paisagem vai ser vista sobreposta às demais e por alguns instantes, sozinha, enquanto passa. Esse procedimento faz com que a narrativa das suas paisagens não se estabeleça apenas individualmente em uma única página, mas também no conjunto de suas camadas. Se desenho é mesmo a capacidade de delimitar, captar entornos, no vídeo, o desenho da artista é traduzido, “trans-posto” (à maneira de Walter Benjamin): como um fio no espaço elaborado para conectar todos os assuntos. E isso constrói a trama.
Dos destinos de se perder
Do vocabulário náutico, descair é desviar. É um procedimento a bordo executado intencionalmente para se deixar levar pelo vento ou corrente marítima. Descair não é o mesmo que estar à deriva, é apenas admitir-se em outras rotas, mais longas, mais tortuosas, mais erráticas, com mais talvez. Corre-se o risco de perder o rumo. Ousa-se admitir que há mais encantos nessa trajetória que na viagem calculada, prevista, monitorada. E ainda que tudo, que o mar seja soberano, resigna-se: não há passividade, resiste-se com certo controle.
Descair é verbo-procedimento, para Kátia Fiera. É noção de aprumar-se, mesmo que antes estivesse quase a perder-se. Porém, o labirinto, a procura pela saída, esse transitório logo após a partida é aprendizado, processo de construção. Não só o mar é tema para a exposição em que a artista conjuga as densidades de descair, mas a insistente autoconstituição artística, um revelar de experimentações para seguir nessa viagem. A artista presencia essa distância percorrida e atenta-se aos seus percalços, fisgando-lhes descobertas: o traço, o “fio do espaço”, o desenho em movimento, a dinâmica das sequências, como se atam nós.
“Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais”[1], intencionava Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa. Assim como os poetas, a artista coloca-se em duplo de percepções, assume também seus múltiplos de personalidade e insere-se nas paisagens, não como protagonista, mas na variedade de artistas, pessoas, naturezas que tem sido nesse processo.
Entre o que vê e diz e desenha, Kátia Fiera apresenta a paisagem via o movimento que a atravessa – o olhar. E o resultado dessa experimentação de trazer ao visível – o desenho – é o que se visita em “Descair”. Tudo leva a ver. Esqueça a causalidade como princípio do artista em viagem, pretendendo-se estrangeiro, ou em busca. Dê-se à paisagem, ambiente-se no desenho como construção. Perscrute os porões, as miragens, a âncora invertida, o pedido de socorro, as velas ao vento, a casa afogada...
[1] Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa.
(Galciani Neves)
Quintais: Pipas e Varais
O reflexo de uma preocupação, cada vez mais visível, qual seja a da vida nas cidades, permeia os trabalhos de Kátia Fiera. O espaço urbano, condição da vida na cidade, é permanentemente visto e revisto, e continuamente apresenta os choques e embates das lutas, nem sempre silenciosas que nele se travam.
Um quintal em plena Avenida Paulista, ou no mínimo uma provocação a todos os que por lá passam, para que convivam com as lembranças e memórias desta situação proposta com os trabalhos de Katia.
O universo de imagens elaboradas e trabalhadas pela artista ocupou, até o presente, superfícies que pudessem recebê-las e fixá-las e assim, mesmo com sua delicadeza, estas se mantinham aprisionadas em pequenos recortes de um mundo interior materializado em sutis e negras linhas sobre a superfície branca.
As imaculadas superfícies brancas estão povoadas de suaves imagens: são torres de eletricidade e pipas; cercas, varais e roupas em quintais; mas há também antenas de televisão, casas simples de tijolo à vista, barracos e palafitas; todas e cada uma delas nos remetendo a um infindável universo que é o de nossas cidades repletas de contrastes, de energia, de vitalidade, de violência, de instabilidade, de insegurança e de um permanente estado de tensão.
Na proposta da artista para intervir no espaço da cidade, também na percepção que as pessoas têm de seu espaço e , na possibilidade de atrair olhares daqueles que transitam por aquela via de circulação, não há um sentimento, ou uma constatação niilista, ou mesmo uma apologia apocalíptica da destruição, ao contrário, cada uma das imagens e, em particular o conjunto articulado como um quintal, constituem-se em um projeto de esperança, em crença na possibilidade; uma pequena utopia, um desejo de vida, uma forma poética de declarar sua credibilidade no ser humano.
Marcos Moraes.
Então, vou contar...
Force a maçaneta e entre. É uma exposição de: desenho. Mas, tão logo você finque os pés no chão diante do primeiro desenho (pronto para degustar as linhas, o branco do suporte que elas reafirmam, os planos, os acidentes da tinta, a trapaça da perspectiva), você sentirá seu corpo querendo ir. Ir? Talvez seja aquela fuga pronta sob seus pés, mas não se pergunte. Vá. Sorria, Cheshire Cat, você não será filmado, será desenho animado. Teus passos te levarão por caminhos que tateiam muros, trepe, tome vento na cara, corra, suba, desça, ande, fuja. Pule a cerca, beire-a. Salte. Espante os pássaros. Arranque a blusa, amarre-a e desça por ela. O quê? Você continua com os pés fincados no chão? Parado? Ah, bom, somente seus olhos se movem... Era a isso que eu me referia. As linhas de um bom desenho costumam capturar o olhar forçando que ele escorra sobre elas, como gota de chuva em fio de alta tensão inclinado. Foram teus olhos que tropeçaram naquele degrau, foi teu olhar que escapou pela janela deixada aberta e é teu olhar que te hasteou bandeiras de rendição. Ufa. Teu olhar deu a volta a um mundo. Agora ele está resistindo, não quer se soltar do desenho, como criança que faz birra porque os pais anunciaram que é hora de ir embora. Ele está lá, escondido atrás da torre. Parece que teu olhar não é mais teu. Nunca foi, paciência, é pra isso que serve o olhar, para ser levado por revoadas de pássaros. Arte nos faz lembrar dessas coisas. Vire a chave e saia.
Fábio Morais, inverno chuvoso de 2009
Certa instabilidade e desequilíbrio brotam das construções inventadas por Kátia Fiera. Seus desenhos, munidos de paciência e de um domínio técnico que se aproveita dos imprevistos, engendram uma arquitetura imaginária. Tudo se passa como se casas empilhadas, prédios e torres desajeitadas arriscassem, por alguns instantes, tímidos passos de dança. Há um aspecto lúdico em sua obra que os grafismos sobre armações de pipa escancaram. O universo infantil – castelos frágeis com espessas muralhas de pedra e placas onde se lê “Rua dos Bobos nº. 0” – lhe serve de matéria prima.
No conjunto da exposição sobressaem alguns elementos recorrentes. Antena de tv, arca, escada, fios elétricos, diamantes valiosos, cercas que não delimitam áreas precisas e alçapões, estão entre os símbolos que compõem o vocabulário básico de sua obra. É como se esse alfabeto visual esboçasse uma história que os próprios desenhos se recusam a concluir. Nessa espécie de narrativa há um mistério à espera de alguém que se proponha a decifrá-lo. Ela é banhada por uma atmosfera onírica em que prevalece a desproporção e a falta de escala, evidenciada nas minúsculas ou enormes janelas de construções inacabadas e em ruínas.
Um varal de roupas, também presente no interior dos desenhos, esticado no espaço da galeria, abriga camadas de papeis transparentes sobrepostos que formam um nevoeiro ao redor dos traços. A profundidade do espaço se forma nesses desenhos como lembranças remotas que vão se apagando quanto mais distantes do primeiro plano.
O modo como os trabalhos na parede ocupam o espaço é extremamente espontâneo, como se crescessem indefinidamente para fora do suporte. Fica explícito a maneira como se insinuam para além do anteparo branco, ou melhor, como eles apenas se deixam contemplar nos lugares onde o suporte da tela, do papel ou da madeira se coloca.
Cauê Alves